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Culturas dos povos
Mesmo
admitindo a existência de diversos estudos e discussões
antropológicas sobre o conceito de cultura, podemos considerá-la,
grosso
modo,
da seguinte forma: a cultura diz respeito a um conjunto de hábitos,
comportamentos, valores morais, crenças e símbolos, dentre outros
aspectos mais gerais, como forma de organização social, política e
econômica que caracterizam uma sociedade. Além disso, os processos
históricos são em grande parte responsáveis pelas diferenças
culturais, embora não sejam os únicos fatores a se considerar. Isso
nos permite afirmar que não existem culturas superiores ou
inferiores, mas sim diferentes, com processos históricos também
diversos, os quais proporcionaram organizações sociais com
determinadas peculiaridades. Dessa forma, podemos pensar na seguinte
questão: o que caracteriza a cultura brasileira? Certamente, ela
possui suas particularidades quando comparada ao restante do mundo,
principalmente quando nos debruçamos sobre um passado marcado pela
miscigenação racial entre índios, europeus e africanos.
A
cultura brasileira em sua essência seria composta por uma
diversidade cultural, fruto dessa aproximação que se desenvolveu
desde os tempos de colonização, a qual, como sabemos, não foi,
necessariamente, um processo amistoso entre colonizadores e
colonizados, entre brancos e índios, entre brancos e negros. Se é
verdade que portugueses, indígenas e africanos estiveram em
permanente contato, também é fato que essa aproximação foi
marcada pela exploração e pela violência impostas a índios e
negros pelos europeus colonizadores, os quais a seu modo tentavam
impor seus valores, sua religião e seus interesses. Porém, ao
retomarmos a ideia de cultura, adotada no início do texto, podemos
afirmar que, apesar desse contato hostil num primeiro momento entre
as etnias, o processo de mestiçagem contribuiu para a diversidade da
cultura brasileira no que diz respeito aos costumes, práticas,
valores, entre outros aspectos que poderiam compor o que alguns
autores chamam de caráter nacional.
A
culinária africana misturou-se à indígena e à europeia; os
valores do catolicismo europeu fundiram-se às religiões e aos
símbolos africanos, configurando o chamado sincretismo religioso; as
linguagens e vocabulários afros e indígenas somaram-se ao idioma
oficial da coroa portuguesa, ampliando as formas possíveis para
denominarmos as coisas do dia a dia; o gosto pela dança, assim como
um forte erotismo e apelo sexual juntaram-se ao pudor de um
conservadorismo europeu. Assim, do vatapá ao chimarrão, do frevo à
moda de viola caipira, da forte religiosidade ao carnaval e ao samba,
tudo isso, a seu modo, compõe aquilo que conhecemos como cultura
brasileira. Ela seria resultado de um Brasil-cadinho (aqui se fazendo
referência àquele recipiente, geralmente de porcelana, utilizado em
laboratório para fundir substâncias) no qual as características
das três “raças” teriam se fundido e criado algo novo: o
brasileiro. Além disso, do ponto de vista moral e comportamental,
acredita-se que o brasileiro consiga reunir, ao mesmo tempo,
características contraditórias: se por um lado haveria um tipo de
homem simples acostumado a lutar por sua sobrevivência contra as
hostilidades da vida (como a pobreza), valorizando o mérito das
conquistas pessoais pelo trabalho duro, por outro lado este mesmo
homem seria conhecido pelo seu “jeitinho brasileiro”, o qual
encurta distâncias, aproxima diferenças, reúne o público e o
privado.
Ainda
hoje há quem possa acreditar que nossa mistura étnica tenha
promovido uma democracia racial ao longo dos séculos, com maior
liberdade, respeito e harmonia entre as pessoas de origens, etnias e
cores diferentes. Contudo, essa visão pode esconder algumas
armadilhas. Nas ciências sociais brasileiras não são poucos os
autores que já apontaram a questão da falsidade dessa democracia
racial, apontando para a existência de um racismo velado, implícito,
muitas vezes, nas relações sociais. Dessa forma, o discurso da
diversidade (em todos os seus aspectos, como em relação à
cultura), do convívio harmônico e da tolerância entre brancos e
negros, pobres e ricos, acaba por encobrir ou sufocar a realidade da
desigualdade, tanto do ponto de vista racial como de classe social.
Ainda hoje, mesmo com leis claras contra atos racistas, é possível
afirmarmos a existência do preconceito de raça na sociedade
brasileira, no transporte coletivo, na escola, até no ambiente de
trabalho. Isso não significa que vivamos numa sociedade racista e
preconceituosa em sua essência, mas sim que esta carrega ainda muito
de um juízo de valor dos tempos do Brasil colonial, de forte
preconceito e discriminação. Além disso, se a diversidade cultural
não apagou os preconceitos raciais, também não diminuiu outro
ainda muito presente, dado pela situação econômica-social do
indivíduo.
É
preciso considerar que a escravidão trouxe consequências
gravíssimas de ordem econômica para a formação da sociedade
brasileira, uma vez que os negros (pobres e marginalizados em sua
maioria) até hoje não possuem as mesmas oportunidades, criando-se
uma enorme distância entre as estratificações sociais. Como sugere
o antropólogo Darcy Ribeiro, mais do que preconceitos de raça ou de
cor, têm os brasileiros um forte preconceito de classe social.
Dessa
forma, o Brasil da diversidade é, ao mesmo tempo, o país da
desigualdade. Por isso tudo é importante que, ao iniciarmos uma
leitura sobre a cultura brasileira, possamos ter um senso crítico
mais aguçado, tentando compreender o processo histórico da formação
social do Brasil e seus desdobramentos no presente para além das
versões oficiais da história.
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